domingo, 17 de maio de 2015





CONSULTAS E CONSULTÓRIOS

            A consulta estava marcada para as 15 horas de uma tarde de inverno. Chegou acompanhado da esposa e levava um envelope contendo os resultados dos exames e toda a sua sorte estava selada ali, naquele envelope branco com escritas em verde que acabara de pegar no laboratório de análises clínicas.

            Não tivera coragem de abrir o envelope e as mãos trêmulas mal podiam suster o peso do seu diagnóstico. A esposa tentava encorajá-lo dizendo que toda vida ele tinha sido muito forte e determinado e não seria agora que uma meia dúzia de sintomas iria impedir os seus sonhos.

            No consultório aguardava sua vez, juntamente com os outros que foleavam revistas velhas com medo de se olharam nos olhos e ver a sua angústia refletida nos olhos dos demais, como se num corredor da morte. Pensou na espera dos condenados à morte nos minutos fatais que antecedem a execução.

            Contudo, ele não estava ali para ser fuzilado e aquilo era só uma consulta com o oncologista. Poderia, de repente, não ser nada daquilo que ele imaginava desde que começou a sentir fortes dores, perda de peso e um sem-número de pequenas evidências que ele colecionava sem saber montar o derradeiro quebra-cabeça da existência saudável.

            Vinte e sete anos de casamento, seis filhos e a aposentadoria próxima o levava a fazer muitos planos de desfrute de alguns dias de paz, depois de tantos e tantos anos de labuta constante e poucos resultados práticos. Pelo menos conseguira educar os filhos no básico e a partir daí as escolhas não seriam mais dele. No entanto preocupava-se.

            A secretária chegou à saleta e chamou-o pelo nome: “Seu Manoel?!”

            O Doutor, entre sério e sorridente disse: “sente-se”!

            Reparou, por alguns instantes no consultório do médico, de relance, pois logo em seguida o Doutor disse: “Bem, vejamos o que temos aqui!” abriu o envelope e seus olhos percorriam o laudo do laboratório e a sua fisionomia não revelava nada, enquanto lia e anotava os dados numa ficha.

            A esposa o aguardava do lado de fora e os filhos todos espalhados pelo mundo, tentando se encaixar no mundo. Sentiu-se só, vulnerável como no dia em que nascera, 58 anos atrás na zona da mata mineira. Ansioso, aguardava a sentença do médico que, se positiva o levaria de volta pra casa e, com algum repouso, dieta e medicamentos poderia continuar a cuidar dos seus passarinhos.

            O médico interrompeu seus pensamentos, pigarreou, dobrou o papel do exame, colocou-o de volta no envelope branco com letras verdes e disse, num tom normal de quem lida com a coisa diariamente por anos-a-fio, num desafio constante de enfrentar e tratar a doença dos outros.

            -- Sô Manoel, não adianta eu mentir para o senhor, os exames são claros. Terá   que ter muita coragem e enfrentar a coisa!

            -- Doutor, quanto tempo me resta?

            -- Difícil dizer, vai depender da sua resposta ao tratamento, da quimioterapia, da radioterapia, da sua tolerância e resistência à medicação... só posso dizer que faremos o melhor para amenizar e aliviar seu sofrimento, em busca daquilo que seja melhor para o senhor e sua família, dentro das suas possibilidades.

            Ainda uma vez olhou em panorâmica para o consultório e deteve-se diante de um porta-retratos do médico e de sua família, provavelmente era no México, Cancun talvez, enfim, cenários totalmente improváveis para ele, agora e sempre.

            Saiu do consultório já com uma resolução tomada, de si para si, mas não diria nada à esposa Marlene, além do terrível diagnóstico. Tinha uns contatos com a turma do bairro e contava com eles para proporcionar-lhe os meios de que precisava para encerrar.

            Era essa a sua primeira ideia, de momento.

            Já na rua, sua esposa, impaciente, queria saber: “Marlene, querida, nada a fazer, é sério, jáem estágio terminal e poucos meses, pelo que entendi do médico”.

            -- Não, não pode, não pode ser, ainda não, não, pelo amor de Deus, não, nunca desanime, faremos o que for possível, há de haver um jeito. Vamos buscar uma segunda opinião, ouvir nossos filhos, tratamentos alternativos, milagres existem, pode crer, eu mesma sei de muitos casos em quê...

            Silêncio.

            No dia seguinte acordou cedo, ou melhor, nem dormira. Foi direto para a Vila Bragantina, aonde tinha aqueles conhecidos e queria um três oitão. Uma varredeira de rua fazia o seu trabalho rotineiro e o impediu, pela sua simples presença e testemunho, de consumar o seu intento, num momento de choque e de desespero. No fundo ele não queria que ninguém soubesse de sua desistência.

            Manoel não sabia o que dizer em casa, quando voltasse. Tomara um porre, pra finalizar. No entorno de onde estava havia um galpão de reciclagem e ele ficou ali, absorto, observando e absorvendo o movimento. Alguns traziam papel, caixas de papelão, plástico, metais e latinhas amassadas num rodízio frenético e desimportante como a vida.

            Uma garota japonesa e um velho chamaram-lhe a atenção para um mesmo objetivo: a sobrevivência e a continuidade da vida. Conversou com eles por algum tempo enquanto olhava para as árvores e os pássaros cantando. Um corvo pousara sobre o seu destino e não havia asas para surpreender a moita de mato que irrompera em seu caminho, como um obstáculo.

            No caminho de volta, circunscrevendo até melhorar e retomar a fiada da vida inevitável verificou uma placa que dizia: Consultório de Psicologia. Olhou para os lados, desconfiado e entrou. Mesmo não havendo chances de salvar sua vida poderia, ao menos, compreendê-la melhor, lidar com os desafios e as dificuldades que havia e seguir em frente com qualidade de vida até o final inevitável que o médico havia dito eque ele não poderia fugir. Era um diagnóstico terrível que ele teria que aceitar.

            Todos os seus ancestrais haviam passado por isso, por esse desafio antes de morrer e não podiam contar, naquela época, com essa ajuda inestimável para proceder a travessia.

            Estava resoluto a tentar e entrou com uma ideia de recuperação em sua cabeça e a moça, simpática, ao recebê-lo disse-lhe: ‘acho que posso te ajudar”! e assim foi..

            As luzes na casa de Manoel, desde então, tiveram uma nova perspectiva e luminosidade de compreensão, e quando ele morreu a dor era menor, apesar da escuridão e de ter que conviver com ela.

Antes que se diga, o corvo incorporou-se à família e o acompanhamento psicológico se estendeu à viúva, dando um novo significado para asua vida.Roupa limpa na cama em que Sô Manoel se banhara em sua partida. Luz!




Esta é uma crônica escrita por Milton Rezende, escritor e poeta, meu pai, que fez a gentileza de contribuir com nosso blog tratando de um tema tão delicado e ao mesmo tempo tão corriqueiro.

Milton Rezende




Psicóloga Stael Rezende (UFSJ) - CRP-04\43387.                                      
staelcontato@hotmail.com e starezende2010@hotmail.com
Telefones: (31) 7563-3841 (TIM) – (32) 85139852 (Claro)
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